Eu descobri o que era o amor com os pássaros.

Sempre que olho pro céu e pras árvores e pros fios de eletricidade da cidade de concreto eu vislumbro a liberdade. Eles, os pacientes semeadores da alvorada, planando numa paz santa e aparentemente intocável por entre as nuvens.

Eu sempre vi beleza descomunal na liberdade. Eu sempre vi beleza intensa no amor. Mas eu nunca soube ser os dois.

Desde a primeira vez que ouvi que amar era libertar eu busquei por isso. Eu busquei essa paz; sondei todas as esquinas da cidade chamando o amor pelo nome. Você sabe quão triste é procurar por um rosto que você nunca conheceu? Quão frustrante é desejar um amor que você nunca experimentou?

Associei o amor à tantas metáforas durante toda a vida. Das que eu me lembro agora:

1. A cair; nas profundezas de um oceano desconhecido, de um penhasco diretamente para as pedras, num buraco negro sem esperança de ver a luz do dia outra vez.

2. A rasgar; rasgar-se de si e partir-se em dois para dar parte de si ao outro, enfiar os dedos dentro do peito e oferecer abrigo sem medo de construir um lar dentro do peito, desfiar os fios da própria solidão e ata-los aos fios da solidão de quem se ama.

Há alguns dias tive uma epifania sobre o amor. Percebi que sempre supus que o amor foi feito pra doer. Esperava pela dor como um velho sentado na sua cadeira de cordas trançadas favorita espera todo dia às 19h00 pelo vira lata que mora na sua rua pra achegar-se e aconchegar-se as suas pernas pra mais um pôr do sol.

(...)

Enquanto tomava café na casa da minha tia, fechei meus olhos e deixei meus sentidos se elevarem. Sobrepondo-se ao som das vozes dos meus familiares, ouvi algo delicado, afiado. Levantei-me. Segui o rastro. Acabei num cômodo banhado à luz do sol, com o cheiro verde e fresco das plantas. Olhei em volta com atenção, procurando o som que me atraiu, e meus olhos cruzaram com olhos negros. O pássaro olhou pra mim com uma sabedoria de mil anos pousada sobre os pequenos ombros; nos olhamos por longos minutos. Os outros pássaros que estavam à minha volta afinaram seu canto e fui envolta na sua redoma. Um aperto fundo no meu peito me impedia de encontrar a quietude no barulho da minha cabeça. Passei o indicador de leve pelos pequenos pedaços de madeira cruzados que prendiam o pássaro que ainda me observava.

"Como se prende algo tão lindo só porque o ama?"

Então as ondas bateram nos corais e um couro estralado quebrou a barreira do som e as penas de Ícaro derreteram e caíram junto das suas lágrimas e Atlas ajeitou o calvário do universo com as mãos sobre suas costas e tudo fez sentido. Tudo, tudo clareou diante dos meus olhos atônicos.

Como se prende algo tão lindo só porque o ama como se prende algo tão lindo só porque o ama como se prende algo tão lindo só porque o ama

Eu adorava te ver acordar. Tua expressão de sono e a forma como teus olhos demoravam na preguiça da manhã. Adorava teu jeito de morder os lábios quando sorria e o tom estranho da tua risada e os teus dedos excepcionalmente compridos. Eu te achava diferente e estranho e lindo. Lindo exatamente como era.
Como eu pude tentar te prender, então? Como pude privar tua beleza e todos os teus detalhes únicos só aos meus olhos? Como eu não pude entender tua necessidade de esticar tuas asas? De ficar porque quer ficar, não porque te mantenho entre grades finas de madeira?

Você me arrastou pra tua tempestade enquanto eu ansiava por te guardar na minha paz.
Mas a minha paz não era abrigo, era cárcere. Tua tempestade não era escuridão, era fúria. Eu não sabia diferenciar e eu te privei de sentir o vento no rosto quando partia e o acalento no peito quando voltava pra mim.

Você nunca quis voltar porque nunca te deixei ir. Não soube fazer dos meus braços um ninho cheio de folhas limpas e macias. Fiz uma toca espremida com uma única saída. De todos os pássaros, eu era o João de Barro e nunca notei.

Eu demorei 21 anos pra perceber o mal que a posse implanta nas nossas veias quando a disfarçamos de amor. 

Tantas primaveras pra alcançar a metanoia que eu nunca soube que precisava.

Quanto tempo quis possuir pensando amar. Quantas vezes não te permiti inspirar na ânsia de não dividir nem o oxigênio que adentrava teus pulmões porque a única coisa que podia te adentrar era eu.

Eu sempre quis ser nó. Nunca percebi que era o nó da própria forca que me roubava o ar e te roubava o ar e roubava o ar de todos nós, neshama. Eu nunca soube o quanto te doía não respirar. Agora eu sei.

Eu descobri o que era amor com os pássaros.

Abracei o polisipo como nunca soube te abraçar; com braços quentes, de casa, de quem aceita o que vem de bom grado e não sufoca.

Uma poeta uma vez escreveu: "você se foi querendo guerra, mas eu te ofereço minha paz; eu te perdôo e te pacifico".

Você se foi querendo paz e eu te ofereci minhas muralhas. Te ofereci meus soldados famintos por sangue e minhas lanças afiadas e eu recusei tua bandeira branca. Nunca te ofereci paz, assim como não soube te deixar voar.

Eu te perdôo e te pacifico, mo ghradh. Eu me perdôo e me pacifico. Não dói mais agora. Se deixa fluir.

Se permite esquecer de tudo que causou ferida e deixa só a lembrança dos risos e do toque dos narizes e dos sussurros baixos das promessas que nós nunca chegamos a cumprir.

Se permite ser feliz de novo. Não comigo, não. Não comigo.

Mas tira do teu coração essas grades. Se liberta como eu te libertei.

O amor é lindo quando não tem as asas atadas.

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